Texto publicado pela professora Lia Giraldo no JC em 5/04/2008 :
Dengue, tragédia anunciada
Lia Giraldo da Silva Augusto
[1] Leio com tristeza todos os dias às notícias de aumento do número de mortes por dengue no Brasil, uma das maiores tragédias de Saúde Pública dos últimos tempos. Tragédia pelos seguintes fatos: a dengue uma doença viral de baixa letalidade e as mortes podem ser evitadas; no entanto, tornou-se endêmico (apresenta continuamente uma determinada freqüência de casos de dengue) e o surto epidêmico atual do Rio de Janeiro ocorre na cidade com a mais alta concentração de serviços médico-hospitalares do país; por ter um Programa Nacional de Controle do Dengue - PNCD que consome muitos recursos públicos e apresenta baixa efetividade; haver despreparo dos serviços e dos profissionais de saúde para o atendimento adequado aos casos de dengue; haver desinformação e confusão sobre um tema cientificamente conhecido e tão importante para a saúde pública; por haver falta de responsabilidade dos poderes públicos para com os múltiplos condicionantes da dengue; por focalizarem prioritariamente e ainda por métodos errados as ações de prevenção da dengue no “combate ao mosquito”; por desconsiderarem os contextos de riscos e por culpabilizar a população ou os municípios pelo fracasso das medidas de controle. Sob o título “Programa de Erradicação do Aedes aegypti: Inócuo e perigoso (e ainda perdulário)” publicamos há dez anos (em 1998), com outros pesquisadores, carta ao editor em uma das mais prestigiadas revistas de saúde pública do país, chamando a atenção para a pouca efetividade do programa oficial de controle de dengue e os absurdos nele contido. No Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, temos realizado pesquisas, publicado teses, artigos e livro sobre o tema. Recebemos até prêmio acadêmico por isto, mas tudo parece não ter valor, quando os resultados destes estudos contrariam os interesses presentes na questão da dengue. Até o Ministério Público de Pernambuco se mobilizou em 1989, ao nosso pedido, mas em vão. O que assistimos na mídia nos dias atuais é um déjà vu! Exemplifico: logo após a última grande epidemia de dengue vivida no Brasil em 2002, boa parte da população ficou imunizada pelos vírus circulantes e por esta razão houve uma queda temporária no número de casos novos. Na época, mesmo sabedores de não ter havido, nesse pouco tempo, mudanças substancias nos condicionantes sociais, culturais, ambientais, sanitários e biológicos que justificassem a melhora real na incidência de dengue, as autoridades federais de plantão trataram logo de capitalizar aqueles resultados efêmeros e não sustentados como sendo um êxito decorrente da adoção de uma “nova estratégia” de controle da dengue. Na verdade, os indicadores de infestação do Aedes aegypti mantiveram-se persistentemente elevados. Com um agravante: como já era esperado, em número considerável o Aedes estava resistente aos venenos químicos. No entanto, estes permaneceram em uso, indiferentes a nocividade desses produtos, fazendo a população crer que a solução do problema se dá pelo “combate químico ao mosquito”. Esta farsa sanitária foi persistentemente bem manipulada, gerando uma “verdade” para consumo da mídia e para resultados políticos de curto prazo, como eleições e prestígio pessoal. Não demorou muito para que um novo contingente de pessoas que não estavam imunizadas, especialmente as crianças, viesse a contrair a essa virose como já se sabia, mantendo os níveis endêmicos ou fazendo surgir novos surtos epidêmicos, como estamos observando agora no Rio de Janeiro. Nunca as autoridades públicas foram suficientemente corajosas e honestas para fazer autocrítica, têm preferido colocar a culpa nos “outros”. Identificamos na fala dos comandantes de plantão as seguintes desculpas: “o mosquito venceu”; “a culpa é do mosquito”, “a culpa é do clima”, “a culpa é da população”, “a culpa é do município”, “a culpa é do governo federal”, etc. Perguntamos, como a dengue desafia a “inteligência epidemiológica” do país? Por que com tantos recursos gastos não se consegue um resultado positivo? Aliás, o PNCD é um dos programas de maior orçamento do Ministério da Saúde. Bem, do ponto de vista da causalidade da dengue sabemos que o contexto de habitação e de infra-estrutura urbana, o padrão de consumo e as políticas públicas mal conduzidas, especialmente as de promoção e proteção da saúde, são os elementos principais do favorecimento das situações de transmissão do vírus do dengue. Sabemos também que diante do quadro tão perverso de iniqüidades sociais e de injustiça ambiental são requeridos serviços de saúde acessíveis e resolutivos nas ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como de prevenção das nocividades ambientais. O modelo de controle da dengue centrado no uso de venenos, é mais do que um erro, é um crime, posto que torna os insetos a eles resistentes; afeta outros seres vivos do ecossistema; expõe os seres humanos a produtos nocivos para a saúde; consome recursos públicos sem efetividade; torna as pessoas crentes em uma eficácia inexistente dos venenos; tira das pessoas a noção de perigo no uso de venenos; inibe as iniciativas de adoção de outras medidas mais eficientes e de posturas mais pró-ativa da população e dos agentes de saúde, tais como o manejo ambiental por meios mecânicos; a educação em saúde; a compreensão da complexidade e a gestão integrada do problema; comunicação adequada; abertura para o exercício da participação cidadã etc. Como já é sabida, de muito tempo, a hidratação é uma das grandes medidas preventivas do agravamento da dengue. No entanto, orientação nesse sentido tem sido pouco veiculada na rede de saúde e nos meios de informação. Na verdade, as dificuldades de acesso e a má assistência dos serviços de saúde (especialmente falhos nas ações de promoção e de diagnóstico) induzem a população a se automedicar, retardando as medidas terapêuticas e fazendo com que, em alguns casos agravados, as perdas de líquidos (hipovolemia / desidratação) e a hemorragia tornem-se fatais. Mortes plenamente evitáveis por hidratação a tempo e por medidas de suporte geral. Na minha vida profissional vivenciei, em São Paulo, a epidemia de Meningite Meningocócica de 1974, onde o governo militar tentou esconder de todo jeito esse fato da população. Só quando não tinha mais leitos e nem espaços para internação no Hospital Emílio Ribas é que a notícia deixou de ser censurada ao público. Impotente estudante de medicina, vi morrer muita gente por demora no atendimento e falta de vacinação. Testemunhei e investiguei dos nascimentos de crianças com anencefalia, em Cubatão, no começo da década de 80. Desvelei centenas de casos ocultados de intoxicação crônica por exposição ao benzeno nas petroquímicas nessa mesma década. Fiquei indignada com as mortes de pacientes submetidos à hemodiálise em Caruarú, em 1996, e perplexa fiquei quanto aos resultados da investigação. Pode-se perguntar o que há em comum entre tantas tragédias sanitárias e a que se observa na atual epidemia da dengue? Do meu ponto de vista, é a falta de compromisso e responsabilidade social, de coragem e honestidade de se assumir que o modelo adotado para o controle de dengue (e também para alguns outros problemas de saúde) não responde a complexidade dos contextos urbanos. É preciso repensá-los e um primeiro passo é encarar os desafios de forma competente, intersetorial e participativa, mediante relações de confiança e de respeito.
[1] Médica Pediatra, do Trabalho e Sanitarista. Mestre e Doutora em Medicina. Pesquisadora e Professora Universitária. Orientadora de teses, autora de livro e artigos sobre dengue.
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Lina Machado - 1M 2008.1